Tudo bem que a cidade era
pequena, mas o velório foi digno de um feriado municipal. A falecida era
benquista por todos e por isso o ato reuniu um número imenso de pessoas. O
atestado de óbito confirmava morte por infarto do miocárdio, ou como preferem
alguns, “morte natural”. É lógico que de natural não havia nada. Como é obvio
que a morte natural não poderia ser evitada, a “ciência médico-legal da morte”
decidiu que os idosos nunca morrem de velhice, mas do coração, de insuficiência
respiratória ou de qualquer outra coisa do tipo. Tudo bem faz sentido.
O clima que emergia
daquele velório era um clima pesado, de tristeza e saudade, provavelmente
compatível às ótimas recordações que ficaram daquela senhora. Uma comoção um
tanto natural, aliás, a morte é um dos maiores tabus da cultura ocidental, que
vê na morte o fim. Por alguns minutos, eu, que não tinha nenhum parentesco com
a falecida e apenas algumas vezes a tinha visto, também me pus a chorar.
Bastaram-me alguns poucos momentos de contato para que chorasse feito uma
criança.
Mas
deixando de lado a choradeira, em especial a minha, e focando na essência
daquele momento de vulnerabilidade emocional, minha mente começou a processar
uma série de informações, como se resolvesse compreender o incompreensível ou
racionalizar o ilógico. Então, seguindo aquela corrente de sentimentos e
sensações, parei, pensei e comecei a me perguntar: Se a morte de uma mãe é tão
dolorosa assim, como deve ser a dor ao se enterrar um filho? Qual a sensação de
se enterrar simbolicamente alguém morto em guerra? Qual a sensação de nem saber se um parente
está vivo ou morto? Ou seja, qual a sensação sentida quando a morte parece não
seguir uma lógica? É lógico que eu não esperava que as respostas surgissem
naquele ambiente. Eu morreria de medo se ouvisse alguma voz...
Esta
semana acompanhei pela TV mais uma notícia de decapitação de refém no Iraque. É
espantoso. Só este ano eu já perdi a conta de quantos foram decapitados. Nos
jornais vejo quase todos os dias em números o saldo de mortos das últimas 24
horas. Acho que se somássemos só as baixas civis no Iraque, durante um mês, já
teríamos uma base de quanto tempo levaria para a população daquele país se
extinguir. A violência urbana já nem é mais dado é uma referência estatística,
que serve quase que exclusivamente como base de comparação com anos anteriores.
Somo a isso, a violência no trânsito, a qual é mais fatal no Brasil do que a
ação de qualquer grupo terrorista no mundo. Pior ainda são os pobres, os
miseráveis, os índios..., estes aí nem sequer são contabilizados, são apenas
hipóteses ou estimativas. Mas como pode a dita “civilização moderna” chegar a
este ponto? Cadê a dignidade dessa gente?
Parece que o ser humano nasceu para a morte, ao invés da vida. E o pior
é que isso é verdade, segundo estudos, em toda história houve sempre mais
guerra do que paz. Aí me ocorreu mais uma pergunta, daquelas sem resposta
imediata, mas que sintetizou todas as perguntas anteriores que me ocorreram: se
a “morte natural” é assim tão dolorosa, qual é a sensação de enterrar alguém
morto da “morte não natural”?
O
fato é que muita gente fez previsões no passado, de cientistas a profetas,
predizendo que o homem evoluiria, até se transformar “num deus”, e que o
indispensável progresso da humanidade atingiria um ponto em que não haveria
guerras, nem doenças, nem morte. Mas a realidade não é bem essa, esse
pessoal se enganou feio, pois vivemos no século da guerra, vivemos no século em
que uma vida tem pouco valor. Não é difícil de perceber. Os soldados mortos em
combate, as vítimas civis das guerras, as vítimas de balas perdidas, de
atentados terroristas, que tratamento recebem? Dizemos que vivemos num mundo de
horrores ainda sequelado pelas lembranças da Segunda Guerra. Que nada! Nós é
que queremos vivenciar parte destas lembranças. Ou não pagamos para que nos intimidem
e assustem? Aliás, a morte é banal ou talvez... legal. Eu, ali, visualizando a
falecida, pobrezinha, e pensando tudo isso. Mas é verdade, pagamos à indústria
cinematográfica bilhões de dólares anualmente para que crie guerras, simule
mortes, dor e sofrimento. Como se não bastasse a realidade dos noticiários,
agora junto ao tradicional medo pela morte soma-se uma estética da negação que
transforma em um banalizado e grotesco filme de horror qualquer referência
séria a ela. Se não nos fosse suficiente a ficção, ainda saímos às ruas
defendendo os interesses de sujeitos que matam, roubam e danificam a
integridade física e psicológica alheia, em troca de alguns favores baratos, às
vezes, uma cesta básica ou alguns “real”. Por outro lado criticamos as ações de
ricos, poderosos, famosos, considerando apenas a versão parcial de muitos meios
de comunicação. Será que nos sentimos mais aliviados com as notícias da mídia,
a mesma mídia que nos choca, pois temos os “EUA defendendo a todos”? Essa é mais
uma daquelas perguntas que eu não saberia nem a quem direcionar, pois hoje a
morte está banalizada. Banalizada pelos
vencedores das guerras, pelos poderosos e ricos, pelos detentores de armas,
pelos fanáticos religiosos e talvez, por que não, por todos nós.
Apesar
daquele momento de tristeza, percebo que aquele velório me ensinou algo. Algo
grandioso e profundo, que eu posso resumir na seguinte frase: quanto mais
pessoas morrerem da “morte natural”, mais sentido fará a vida. Naquele dia, a
vida ainda fez sentido pra mim. Que Deus a tenha!
ZSCHORNACK, Thiago. 2010.
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